segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Soneto de Contrição


Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.




(Vinícius de Moraes)

domingo, 27 de novembro de 2011

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


(Fernando Pessoa)

sábado, 26 de novembro de 2011

O bicho

Vi ontem um bicho 
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.



O bicho, meu Deus, era um homem.


(Manuel Bandeira)

O mar e o lago


Gilberto Gil


Rugas no rosto moreno
Ondas no lago sereno
Vento repentino
Ares de menino

Fugas de brigas de rua
Luas e luas e luas
Repentina paz
Meu velho rapaz

O velho Mário Lago
O velho, o mar e o lago
O mar e o lago

A alma bem resolvida

A embarcação ancorada
Mar incorporado
Mares do passado
Aqui agora o presente
Lago tranquilo da mente
Paz no coração
Meu amado irmão

O velho Mário Lago
O velho, o mar e o lago
O mar e o lago

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Somos o que podemos ser

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão
Um dia me disseram que os ventos às vezes erram a direção
E tudo ficou tão claro
Um intervalo na escuridão
Uma estrela de brilho raro
Um disparo para um coração

A vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter

Um dia me disseram
Quem eram os donos da situação
Sem querer eles me deram
As chaves que abrem esta prisão
E tudo ficou tão claro
O que era raro ficou comum
Como um dia depois do outro
Como um dia, um dia comum

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão
Sem querer eles me deram as chaves que abrem esta prisão

Quem ocupa o trono tem culpa
Quem oculta o crime também
Quem duvida da vida tem culpa
Quem evita a dúvida também tem

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter...



(Humberto Gessinger)

sábado, 19 de novembro de 2011

Tavinho Paes

quando a liberdade sonha
tudo que está ao seu alcance
...desperta!livre é quem sabe
que até no cárcerea porta sempre lhe estará aberta
quando a liberdade desperta
tudo que está ao seu alcance
...sonha!
e todos os sonhos
viram motivo de festa
a liberdade dos sonhos
é tudo que nos resta
Tavinho Paes

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Língua

Gosto de sentir a minha língua roçar 
A língua de Luís de Camões 
Gosto de ser e de estar 
E quero me dedicar 
A criar confusões de prosódias 
E uma profusão de paródias 
Que encurtem dores 
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa 
E sei que a poesias está para a prosa 
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala mangueira!
Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode 
Esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas 
E o falso inglês relax dos surfistas 
Sejamos imperialistas 
Vamos na velô da dicção choo choo de 
Carmen Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da 
TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homen
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisas como Rã e Imã
Nomes de nomes 
Como Scarlet Moon Chevalier
Glauco Matoso e Arrigo Barnabé e maria da
Fé e Arrigo barnabé
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode 
Esta língua?
Incrível
É melhor fazer um canção
Está provado que só é possível 
Filosofar em alemão 
Se você tem uma idéia incrível
É melhor fazer um canção
Está provado que só é possível 
Filosofar em alemão 
Blitz quer dizer corísco
Hollyood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o 
Recôncavo
Meu medo!
A língua é minha pátria 
E eu não tenho pátria: tenho mátria 
E quero frátria
Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Samba -rap, chic-left com banana
Será que ela está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô você e tu lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro
Nós canto-falamos como que inveja negros 
Que sofrem horrores no gueto do Harlem
Lívros, discos, vídeos à mancheia
E deixe que digam, que pensem e que falem



Caetano Veloso

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Digo sim

Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no Carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
- em meio à violência e a solidão dizendo
sim -
pelo espanto da beleza
pela flama de Thereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
- digo sim

Ferreira Gullar